Uma letra trocada pode causar uma grande confusão! Podemos ilustrar com os verbos espiar e expiar, dos quais derivam respectivamente espionagem e expiação. Espiar significa olhar, verificar, espionar, na maioria das vezes com o propósito de prejudicar ou acusar. Jó se queixou de Deus e se referiu a Ele como o Espreitador dos homens, pois ficava espiando os seus pecados, e não lhe deixava em paz (Jó 7.20). Já expiar...
No Antigo Testamento o verbo expiar era correlato de extinguir ou apagar. Em Isaías 28.18 Deus disse para a liderança do povo de Israel, que alegava ter feito uma aliança com a morte e um pacto com o além para não ser destruída, que a aliança com a morte seria anulada (literalmente “expiada”) e o acordo com o além não subsistiria (isto é, não permaneceria). Jeremias orou pedindo para Deus não expiar nem apagar o pecado dos inimigos que lhe tramavam a morte (Jr 18.23). Algo que era expiado tinha sido eliminado ou apagado. A palavra foi usada também com o sentido de aplacar ou apaziguar a ira de alguém, pois uma ira expiada tinha sido apagada ou extinta (Gn 32.30; Pv 16.14).
A maioria dos usos do verbo expiar e do substantivo expiação, no Antigo Testamento, está no contexto religioso, referindo-se ao relacionamento com Deus. Especialmente tratando da questão do pecado. Expiar refere-se ao processo pelo qual o problema dos nossos pecados é resolvido diante de Deus. Expiação é o meio pelo qual nossos pecados são perdoados.
O pecado é uma desobediência à lei de Deus. Como a lei é de Deus, o pecado é também uma ofensa contra Ele. Isso provoca a Sua ira e traz juízo sobre o pecador. Para que esse juízo não se inicie, ou se já começado, cesse, a expiação se faz necessária.
Deus, como parte ofendida, é quem determina o modo que a expiação deve ser feita. Os ofensores devem submeter-se ao modo estabelecido por Deus. Quando a expiação é realizada, eles são perdoados e purificados e a razão da ira de Deus já não existe mais.
A expiação apagava o pecado. Por isso, a pessoa era perdoada e purificada, sendo aceita por Deus e ficava pronta para servi-Lo (Levítico 4.20,26,31,35; 16.30). Foi dito para Isaías que a tua iniquidade foi tirada (afastada, retirada) e perdoado (literalmente “expiado”) o teu pecado (Is 6.7). Em Daniel 9.24, em um paralelismo triplo, notamos que a ideia de extinguir e apagar os pecados, aparece ao lado de expiar (fazer cessar, dar fim, expiar). Esta é a razão pela qual, algumas vezes, o verbo foi traduzido como “perdoar” em nossas versões, usando a metonímia, figura de linguagem que, neste caso, emprega o efeito no lugar da causa (2Cr 30.18; Sl 65.3).
A expiação incluía a reparação ou satisfação para com a parte ofendida, por isso carregava também a ideia de resgate, isto é, uma restituição pelo prejuízo causado. Era a expiação que tornava possível o resgate (Jó 33.24). Quando Deus castigou Israel por causa dos pecados de Saul contra os gibeonitas, Davi foi até eles e perguntou: de que modo expiarei, normalmente traduzido em nossas versões como que resgate vos darei. E só depois da expiação feita, foi que Deus se tornou favorável com a terra (2Sm 21.1-14).
Deus estabeleceu que a vida fosse dada em sacrifício, demonstrando isso através do sangue derramado (Lev 17.11). O animal morto em sacrifício era a expiação, o resgate dado no lugar do pecador. Por isso, havia a cerimônia de imposição das mãos sobre o animal e a súplica que confessava o pecado (Lev 4.15,20; Dt 21.8).
A expiação apaziguava a ira divina, desviando-a (Nm 16.46,47; 25.11-13). No Salmo 78.38 a palavra expia foi traduzida como perdoa. Como o pecado havia sido apagado, a ira também era apagada, deixava de existir.
Todo o ritual sacrificial do Antigo Testamento era uma figura que apontava e prometia a realidade que ainda viria e se completaria com um sacrifício superior, o sacrifício do Senhor Jesus Cristo. Isso foi proposto pelo próprio Deus (Rm 3.21-25).
Nossos pecados foram um ultraje contra a honra infinita devida a Deus (Sl 90.11). Ninguém dentre a humanidade é capaz de pagar o preço devido. Por isso, o próprio Deus infinito, na pessoa de Seu Filho Jesus, fez-se humano, pois era necessário que Ele se tornasse semelhante àqueles que iria salvar e, assim, fizesse expiação pelos pecados deles (Hb 2.17).
Encarnado, ele cumpriu perfeitamente as exigências da Lei de Deus (1Pd 2.22) e, mesmo assim entregou-se como uma oferta pelo pecado (Rm 8.3), fazendo um sacrifício perfeito, que satisfez plenamente a honra ultrajada de Deus, trouxe o perdão e a purificação para todos os que se submetem a este modo estabelecido por Deus (Hb 9.11-14).
A motivação de Deus foi o amor. Nisto consiste o amor... enviou o Seu Filho como expiação pelos nossos pecados (1Jo 4.10). Jesus Cristo tornou-se a expiação pelos nossos pecados (1Jo 2.2)
Para receber este perdão é necessário reconhecer que não há em nós nenhuma possibilidade de resolver nosso próprio pecado e seus resultados condenatórios. Ao reconhecer isso, fazer como o publicano, que clama: Ó Deus, faz uma expiação por mim, pecador! (Lc 18.13). Isso faz com que o pecado seja apagado, a ira desviada e o pecador justificado (Lc 18.14).
Quando isso é feito Deus não mais espia os nossos pecados, pois eles foram expiados. Portanto: aqueles que foram expiados não são mais espiados!